quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Matriarca


Não é a primeira vez que escrevo aqui, neste blog, que venho de uma família grande. No entanto, quando digo grande, não é no sentido de ter imensos tios, primos, os quatro avós vivos e por aí em diante, não. Quando digo grande, é no sentido figurativo. Isto porque mesmo que a minha família se cinja praticamente pela parte paterna e a minha directa, ou seja, a que os meus pais criaram connosco, mesmo assim, e lá está,  a acho gigantesca e cheia de vida. Mesmo apesar de sempre ter sentido pena de nunca ter conhecido ninguém da parte da minha mãe, isto porque quando ela veio de Angola, após o 25 de Abril e ter deixado tudo para trás, literalmente tudo, e eu sei, hoje principalmente que deixou também parte da sua alma. Pois deixou os familiares que tanto amava. Os únicos que lhe restara, após a morte dos seus pais em pequena. Talvez esse factor tenha influenciado na sua maneira de ser e estar daí em diante. Porque a minha mãe é uma pessoa muito doce, meiga. Uma paz de alma. Muito tímida. Sempre pronta a ajudar quem precisa. É que depois, engraçado, que mesmo envolta daquela doçura, está uma mulher de armas. Sempre que é preciso, essa força vem ao de cima, porém, o estado normal, é a sua timidez, doçura e tranquilidade. Mesmo que hoje em dia tenha tenha mudado muito pela doença...
Posto isto, concluo que por estas características todas entre outras tantas que faltam mencionar que, as pessoas sempre acharam que a minha mãe/pais eram a casa da misericórdia. Tanto assim é que, quando os meus pais estavam a vir para Portugal, além de trazerem os filhos deles que eram dois na altura, ainda tiveram que trazer mais dois. Não que lhes tivessem obrigado no verdadeiro sentido da palavra, mas quando os pais das ditas crianças deixam as mesmas dias antes na casa dos meus pais a passarem uns dias e, sabendo de antemão que eles estavam de partida para Portugal, não os vão buscar, penso que se diz tudo. Mesmo que teime em escrever, talvez para materializar o cenário isto «que pais... o que um chá de sumiço não produz». Ora, perante tal situação, os meus pais tinham somente duas opções: ou deixavam as crianças na rua, entregues à sua própria sorte, ou vinham com eles. Foi o que acabou por acontecer. Trouxeram duas crianças pequenas, de tenra idade. Uma, sobrinha do meu pai. Outro, primo da minha mãe. Já com duas suas, imagine-se como não foi duro para eles, começarem numa terra que não era a deles, com o estigma que faziam dos retornados, sem escrever na mágoa de deixarem tudo, rigorosamente tudo para trás. Pessoas que sempre viveram bem, terem de começar do zero. No entanto, do zero não começou as responsabilidades, que eram mais que acrescidas...
Perante isto e muito mais, sempre achei, apesar de tudo, que tive uma casa cheia. Rectifico, que tenho uma casa cheia. Cheia de alegria da pequenada. Os poucos que éramos, nunca foi contabilizado matematicamente, porque a alegria quando nos reuníamos era contagiante. A entrega dos afectos, dos momentos vividos, partilhados, enchia-nos a alma. Reconfortava tudo de menos bom que a vida nos trazia. Hoje em dia, adulta, quando vejo os meus sobrinhos, revejo-me. Revejo aqueles momentos passados. Porque apesar de tudo, os meus pais tentaram sempre nunca fazer distinção dos filhos para o primo/sobrinha. Engraçado que quem fazia, muitas vezes eram eles, as crianças.
Francamente? Não sei o que é ter uma casa silenciosa. Não porque não goste, porque gosto de ter os meus momentos de tranquilidade, mas porque sempre tive nos tímpanos o choro de bebé, as corridas pela casa, tipo rally a penantes. As gargalhadas traquinas de quem já fez uma asneira daquelas. Os ralhetes dos mais velhos para a pequenada. Mesmo que no momento, porque não estamos a 100% para eles, ou até para usufruir de forma genuína como pede esses momentos, mesmo assim, acabo depois por concluir que, não há nada mais grandioso do que uma casa cheia de alma.

De alguns anos para cá, muita coisa mudou em mim. Muitos conceitos que tinha, hoje, perderam o sentido. Muito coisas que acreditava que deixou também de fazer todo e qualquer sentido. Contudo, apesar de ter noção desta mudança em mim, noto que ainda continuo com o coração mole. Tenho vezes que isso irrita-me solenemente. No sentido de achar que ainda não aprendi que a vida já me ensinou que tenho que ser mais dura, porém, não consigo. E quando sou custa-me. Só eu sei o que isso me corroí por dentro. Só eu sei...

Muito cedo que tenho tido voz activa na minha família. O que após à doença da minha mãe, essa posição ganhou maior dimensão. Desde aí que sinto o peso da responsabilidade nas costas. Porque nada é feito sem passar por mim. Porque tudo e nada é, Essência e, tem sido um fardo demasiado grande. Período complicado. Tem se revelado uma luta titânica.
Voltando uns anos atrás, eis que os meus pais voltaram a viver a mesma situação de terem duas crianças a braços, sim. Uma sobrinha do meu pai que veio de Braga após a sua separação, veio passar uns dias a casa deles para reorganizar a sua vida.
Ora que ela não estava bem, não era novidade para ninguém, mas daí a achar que ela iria fazer o que fez... semanas depois de estar já na casa deles foge. Foge mas, sozinha. Deixando os seus filhos para trás...
Os meus pais, já com os filhos crescidos, já com um neto, vêem-se com mais uma criança de 3 anos e outra de ano e meio. O que fazer mais uma vez perante tal situação? Entregá-los a uma instituição, ou ficar com eles? Já que o pai da menina nunca quis saber dela, e o pai do menino nunca se soube quem é, já que ela fugiu e nunca repôs a verdade. Não é difícil de adivinhar mediante o historial dos meus pais qual foi a decisão que tomaram. Pois. Ficaram com eles, educaram-nos. Deram-lhes o que podiam. É claro que, se tornaram crianças especiais, principalmente a menina, pois já tinham um estigma muito grande às costas. Mas mesmo assim, contra todas as adversidades, os meus pais nunca desistiram, Quando a minha mãe adoeceu, tudo se alterou, como já escrevi. Porque houve outras prioridades, outras tantas preocupações e, é complicado quando entre cinco filhos, só uma praticamente é que tem que se virar por mil para fazer face as situações que vão surgindo. Pois já temos os nossos problemas pessoais. Porque também temos uma vida. Porque também somos seres humanos e não máquinas. No entanto, as pessoas não nos vêem assim. Ou por comodismo, ou por alienação. O que ambos são graves. O que sei, é que neste momento, tenho em mãos uma decisão a tomar. Uma decisão que irá alterar o rumo de vida de alguém. E, tenho receio de tomar a decisão errada. Tenho medo de estar a ser má ou injusta nesta decisão. Porque quando penso com o coração, ele me diz para deixar que a menina continue em casa dos meus pais. Agora, quando penso de forma racional, ele diz-me taxativamente que tenho que tomar uma atitude perante o cenário que se instalou. E qual é o cenário? A menina tornou-se uma rebelde cheia de problemas psicológicos. Graves problemas. Nomeadamente desde mentir compulsivamente. Roubar compulsivamente. Recusar-se a ir à escola. Um problema gravíssimo nos dias que correm. Desrespeitar os tios. Porque a menina sabe que os tios já estão a caminhar para velhos, a minha mãe está num estado frágil, o meu pai já não tem paciência e nem forças para se estar a chatear. Mediante isto, uma coisa é quando eu lá estou, outra é quando estão sozinhos em casa com a miúda. E eu não posso, não consigo estar 24 sobre 24 horas com os meus pais e em cima da situação. Não consigo! Por mais que queira, não consigo. Posto isto, e desde que a miúda desistiu, recusa-se a ir à escola que o caso está na protecção de menores que hoje, mais precisamente às 15hs, vou ter que decidir se ela continua na casa dos meus pais, mesmo com estes problemas todos ou se a deixo ir para uma instituição.

Dava tudo para passar à frente deste dia.

18 comentários:

  1. Que horror, li tudo. E cheguei ao final arrepiada! Que decisão horrível de se tomar...espero que consigas ter o discernimeto necessário para conseguires equilibrar de uma forma ou de outra a balança da tua família, que agora parece-me estar bem desiquilibrada.
    Não queria estar na tua pele, nem hoje, nem ontem e francamente nem nos próximos dias mas força, caso precises, seja do que for, já sabes, estou aqui deste lado, nem sempre tão virtual!
    Beijocas mesmo nossas e muito transtornadas, principalmente por tudo o qe já sabes que me aconteceu e por perceber que existem pessoas que são tão ingratas com o que de mais precioso a vida lhes deu, como essa sobrinha dos teus pais....e já estou a chorar!

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  2. Há decisões que gostaríamos de nunca ter de tomar, porque qualquer que seja o caminho vamos sempre ficar a pensar se o mesmo foi o mais correcto.

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  3. a minha ausência na blogosfera está enorme, para não dizer exagerada. contudo, a saudade do escrever e dos amigos é superior e nem olhei para trás... regressei.

    o teu post...
    minha menina, que peso...!!
    há decisões e decisões, mas essa é daquelas que nos deixa com uma permanente arritmia.
    sabes que não sei como comentar este teu post...?? a única coisa que me vem à cabeça, e depois de ter lido todas as tuas palavras, é o coração GRANDE que há dentro dessa casa, o dos teus pais, o teu.
    queria dizer-te algo quanto à tua situação perante uma tomada de decisão que enfrentas... não me atrevo a dizer, porque não sei o que dizer, assumo. é muito forte, Desculpa...!!

    bj...nho

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  4. Olá. É um problema bicudo, mas tens de agir conforme o teu coração pensa, e de acordo com o que é melhor para os teus Pais, dado que já estão idosos. O que essa menina precisa é de carinho, ser tratada normalmente mas com Amor e carinho. Um abraço e muita força. beijos

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  5. Ohhh, que situação tão difícil. Não te vou dizer para agires segundo o teu coração porque já sei mais ou menos o que írias fazer, mas pensa bastante no que é melhor para os teus pais, pois são eles que vão ficar com a responsabilidade, pois por muito que possas estar, como tu dizes, não podes estar a 100% e se ainda por cima a tua mãe está doente imagino que esta situação não seja de todo fácil para ela.

    Espero que encontres uma solução que seja a melhor para todos, inclusive para essa menina.
    Que corra tudo pelo melhor.

    bjs

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  6. Ter sentido de família não é assim muito comum hoje em dia.
    Quanto a essa escolha, é mesmo um dilema, não há A decisão certa. Boa sorte!

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  7. Por agora ainda sou vista como a pequena da família, mas imagino que daqui a uns anos também sinta essa responsabilidade. É complicado, uma pessoa acaba por carregar o peso de ser vista como uma figura-chave no seio familiar.

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  8. Que problema, fogo...
    não vou dar opinião, pois só vocês sabem realmente o melhor...mas também tens de olhar pelos teus pais!
    E quanto aos retornados, os meus foi igual...ainda hoje oiço as saudades e vejo as lágrimas na minha mãe quando fala de lá...também vieram sem nada, primeiro só ela e os meus irmãos, depois o meu pai...sofreram muito, mas lutaram muito. E eu nasci cá e não passei pelo o que eles passaram...

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  9. voce é uma guerreira... voce e sua familia! espero que tenham decidido o melhor caminho para a garota...

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  10. Eu dava tudo para não estares a passar por essa situação.
    Os teus pais foram ( e são) pessoas excepcionais e acredito que neste momento tenham pouca paciência para tomar uma decisão tão complicada... por isso tu és o pilar deles, já te apercebeste disso? e sei que forte como és conseguirás arranjar forças e ficar do lado que para vocês for o melhor.
    Um grande xi e um beijo (fiquei a admirasr-te ainda mais)

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  11. sei que tomaras a melhor decisão para todos :) Beijinho grande essencia

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  12. Obrigada pelas vossas palavras. De coração cheio.

    Nunca é fácil quando estamos numa posição ingrata. No entanto, só espero que, o que se fizer, mais tarde se venha a concluir que foi o melhor.

    Beijos, muitos!

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  13. De facto, não é uma decisão fácil de tomar, mas acho que desta vez tens que deixar de pensar com o coração... Há uma limite para tudo na vida, e eu acho que chegaste ao limite!

    Mas, seja como seja, boa sorte!

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  14. Ó ceus...fiquei com o coração nas mãos, mais uma vez te digo que realmente és uma grande Mulher e que não invejo nada o teu lugar.

    Como correu afinal?

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  15. É uma situação difícil .Que se escolha o melhor caminho.
    Desejo-te boa sorte e para os teus pais também.
    Sem mais que dizer.

    :)

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  16. Espero que corra tudo pelo melhor!

    beijo
    Sutra

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  17. Só passei hoje por aqui...:/ como ficou tudo?
    Seja qual for a decisão que tomaste tenho a certeza de que foi pelo melhor;)
    Beijinhos

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  18. Jo,

    Ainda estou a aguardar. No entanto, e porque partilhei aqui este episódio, assim como sei que muitos de vós através dos comentários mostraram-se sensibilizados (e eu fiquei também sensibilizada connosco), logicamente que virei dar uma palavra sobre em que ponto ficou a situação. Não está esquecido. Só ainda não o fiz porque de facto estou a aguardar desenvolvimentos...

    Obrigada. :)

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