sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Queimei-me


Queimei-me. Preparava não-sei-o-quê, queimei-me. A fome não é muita. O engraçado é que sabemos o que é o certo, o que é o errado. O que nos faz bem, o que nos faz mal. Mesmo que as voltas que damos acabe sempre no oposto. É mais do mesmo, já se sabe. Queimei-me. Enquanto preparava o não-sei-o-quê para comer, distrai-me. A mente, essa, deambulou lá, longe... queimei-me. Pensava eu que, com a idade passar seria difícil queimar-me. Enganei-me, redondamente. O mesmo pensamento vai para o acto cair. Pensamos sempre que, com determinada idade, cair no meio da rua - por exemplo - é quase ridículo. E é! Não deveria, mas é. Queimei-me. Pensamos sempre que só acontece aos outros. Enganei-me, novamente. Engane-se quem assim pensa, também. Pensa-se que cair é só para os pingos-de-gente. Oh ingenuidade... quando não há mortes e feridos até se solta uma gargalhada. Rir da desgraça alheia, a gargalhada tem um som estridente. Oh, quando queimei-me e senti a dor, é como se não tivesse a acontecer nada. Olhava para o braço e era como se nada visse. Nada sentisse. Queimei-me. Queimei-me na pele. O meu corpo ressentiu-se, mas a mente não acompanhou o momento. Quando soltei um «ai!», os meus ouvidos não ouviram o tal «ai!». Os meus ouvidos não queriam ouvir o que estavam a ouvir. Os meus ouvidos não queriam ouvir o que as minhas emoções estavam a passar perante o tal «ai!». As palavras quando se soltam na atmosfera libertam fel. Libertam doçura. Libertam sempre qualquer coisa que depois fazem reacção. Queimei-me. Nos entretantos dos pensamentos, lá pensei no que se dizia antigamente «em caso de queimadura pôr imediatamente em água fria». Pus. Foi em piloto automático. Parecia um balde de água fria. Era um balde de água fria. Enquanto estava com a queimadura em água fria um flash dos acontecimentos passavam na minha mente. Vi a frigideira a aquecer. Vi o azeite a entrar em abolição. Vi o azeite a saturar-se. Vi o azeite a saltitar. Vi, mas mesmo assim lá fui. Mesmo assim, ali continuei. Queimei-me. Vi a queimadura a alterar-se enquanto levava com a água fria. Vi a passar do vermelhão para o estado de empolar. A pele estava a rebelar-se contra a água. Como se gritasse que não valia a pena, pois o mal já tinha sido feito. Ingenuamente - porque não aprendo - pensei que não me iria fazer mal. Não me iria magoar. Não iria ser frio, mesmo estando a ferver, ao ponto de se virar contra mim e magoar-me. Eu só estava ali, a fazer o não-sei-o-quê para comer. Eu só estava ali... entretanto, eis que me vem à mente - como a querer perpetuar o que sei para o que vejo e sinto - que não magoamos quem está ali, do nosso lado, quem está connosco. É anti-natura. É anti-concebível. É anti-tudo. Ora, ora, daí o meu pensamento. Enganei-me - tontinha é o que sou - ... o que tenho agora no braço, é uma espécie de «avisei-te», mas mesmo assim, depois dos sinais todos que tive ao longo do tempo, foi preciso queimar-me para perceber. É sempre assim, bem se sabe, mas o óbvio consegue irritar-me, solenemente. Por isso tenho sempre a vã ideia que o surpreendente vai-me arrebatar, e não o óbvio. Enganei-me, mais uma vez... até podia me ter queimado à mesma, mas ficaria mais aliviada - é certo - se fosse da tal maneira, arrebatadora. Porque estar-se a viver o momento, e saber mentalmente o porquê de toda a evolução do mesmo, saber como vai terminar é frustrante. É castrador. Sim, é isso que se sente, sem dúvida. Porque no final, pensasse sempre «podia ter sido evitado», mas sabemos que nunca é assim. Faz parte do ritual. O ritual desta vida, que é feita de momentos. Queimei-me.

8 comentários:

  1. E quem nunca se queimou. Todos nós algum dia passamos ou passámos por isso, com o tempo a queimadura passa, a dor passa, mas a marca fica, sempre.

    bjs

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  2. às vezes não damos ouvidos ao nosso sexto-sentido...

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  3. Quem nunca se queimou ou mente ou nunca viveu!

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  4. Na vida queimamo-nos e não aprendemos porque a seguir queimamo-nos outra vez.

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  5. Olá.. eu nunca me queimei, a não ser em pequenas coisas sem importância, e que depois somos " queimados " pela mãe ou o pai...lol. as melhoras e um bom fim de semana. beijos

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  6. As queimaduras da pele marcam e com o tempo vão sarando.
    As queimaduras do coração queimam, doem, marcam, ferem...

    :)

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  7. Ainda hoje me queimei e não foi bonito...

    Beijinho*

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  8. Queimar doi, mas faz com que subamos mais um degrau.

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